Fio Invisível - Segundo Movimento

 O senhor que morava na curva do campo largo — aquele que tinha mais silêncios do que vizinhos — acordou certo dia com o som comprido do trem lá longe, atravessando a manhã como quem corta o tempo no meio. Era ferro com lata, e no ranger das rodas ele pressentiu um chamado, mas desses que não vêm com palavras, só com coceira na alma.

Levantou devagar, porque pressa não acorda a verdade, e preparou o café e a espera. O terreiro estava varrido, a casa em sossego, só ele e o cheiro de quem viria. Não sabia se era ele quem ia ou se era ela quem vinha, mas isso também não era coisa de saber com a cabeça — era saber de pele, de calo e reza.

Na varanda, onde o vento fazia curva, pensou: há tanto pra plantar ainda. Lembrou-se de quando semeou esperança sozinho, só pra ver se Deus escutava semente. Agora, dizia pra si: planto com dois — e dois planta bonito.

O trem chegou sem pressa, cuspindo fumaça e destino. Ela desceu. E não se disse nada de princípio, pois o afeto quando é grande não cabe logo em palavra. Era uma mulher de alforge leve e olhar fundeiro, dessas que trazem os mapas guardados nos olhos. Ele ofereceu a casa — a porta sem tranca, o canto da rede, o banco da varanda onde o tempo senta pra conversar.

Ela disse "obrigada" com o corpo inteiro, entrou, e naquele instante ele soube que o amor não se explica nem se escolhe, mas se reconhece: como trilho reconhece trem, como rio reconhece pedra, como alma reconhece outra alma por dentro da poeira do mundo.

E quando a noite caiu, devagar feito fruta madura, ele pensou em voz baixa, quase como quem reza sem rezar:

— A casa é pequena, mas cabe o céu inteiro, se for por dentro.

Ela sorriu, e no sorriso dele viu o próprio reflexo — e nenhum dos dois sabia se tinham chegado ou se estavam partindo, pois no fundo, já eram chegada e viagem, trilho e trem, semente e colheita, ela e ele, um só giro ao redor de Deus.

E assim, sem saber se iam ou vinham, seguiram. Porque há encontros que não acontecem no tempo: já estavam escritos no silêncio antes que o mundo tivesse som.

Mensagens populares deste blogue

Aljube da alma - vaidade. Tudo é vaidade

Fio invisível - primeiro movimento

Contratempos do tempo