Contratempos do tempo
A manhã, líquida e luzente, entrava pelo quarto como quem desliza entre véus, desmanchando os resquícios da noite — sombras que já não eram, espectros de um tempo suspenso. O corpo, ainda embebido na sonolência, emergia lento do limiar do sonho, como quem ressurge das vidas paralelas. O relógio, dormindo em sua vigília mecânica, ainda não bradara a sua sentença, mas ele, já de olhos abertos, atendia ao chamado silencioso dos deuses, que sempre vinham antes do estalo medonho do despertador.
Era a dança dos dias — iguais e distintos, um após o outro, bordando a tapeçaria do universo. O ritual era sagrado, metódico: lavar os dentes, o café amargo, a cama ajustada como um gesto de ordem no caos. Depois, a rua, a espera na paragem de autocarro, o cálculo exato dos passos e segundos, porque um ínfimo desvio na engrenagem podia transformar minutos em horas perdidas.
O mundo desdobrava-se diante dele — rostos passantes, destinos inconfessados. O trânsito, aquela tormenta engarrafada, pulsava pelo egoísmo confortável de quem se refugia na solidão dos automóveis. O relógio corria, mas o autocarro não chegava. Nem sombra dos outros passageiros, nem sinal do veículo amarelo, que era o seu barco diário pelos mares da cidade.
A dúvida, então, fez morada em sua mente e, buscando um porto de saber, dirigiu-se ao pequeno comércio ali ao lado. Um mundo dentro de um cubículo: frutas, enlatados, bebidas, pequenas necessidades empilhadas no tempo dos homens. O dono, um velho chinês de olhos de madrugada, desdobrava-se em mil papéis — vendedor, guardião, limpador de incertezas. O sotaque, um jogo de sílabas trocadas, entrelaçava o idioma ao mistério da manhã. E foi dele, do ancião, que veio a revelação: greve relâmpago, paralisação total.
O mundo que até então rodava milimetricamente, deteve-se num instante de desordem. Ele, meio perplexo, mas já rindo com os olhos, aceitou o destino como a onda que se rende ao rochedo. Com um agradecimento, recebeu um aceno que continha séculos — um gesto curto, oriental, de quem sabe que tudo passa, tudo flui.
E assim, retomou o caminho de casa, não derrotado, mas refeito. Pois quem entende o tempo não se perde nos contratempos.
Lisboa, 12 de junho 2025.