Aljube da Alma - paradoxo
A hora do almoço, aquele intervalo ínfimo na ordem do dia, sempre uma batalha entre o tempo e a fome, entre o deslocar-se, o comprar, o consumir, tudo isto encaixado em um espaço de sessenta minutos que pouco concediam ao gosto e ao prazer de mastigar sem pressa, mas naquele dia, talvez pela falta de apetite ou pelo excesso de cálculos que lhe fervilhavam no cérebro, resolveu contentar-se com um simples sanduíche e duas latas de energético, uma para si, outra sem propósito definido, até que surgiu o propósito, ou pensou ele que surgiu, porque o propósito às vezes é só uma miragem vestida de intenção.
Sentado sob a sombra de uma árvore centenária, sentiu o tempo, pela primeira vez no dia, desacelerar-se, os minutos tornavam-se perceptíveis, o sabor do pão, da carne, do condimento, tudo parecia mais acentuado, e eis que um mendigo aproxima-se, sorridente, educado, a pergunta habitual de quem sabe que a fome exige respostas, há algo para ele comer, mas já só restavam migalhas do sanduíche, porém havia ainda a segunda lata, porque não dar-lhe, já que pedia, já que ali estava, já que dividir é sempre mais do que somar, e ao estender a lata, viu o mendigo recuar, franzir o cenho ao rótulo, abrir as mãos, negar a oferta, não era aquela a marca que lhe agradava, não beberia, e assim afastou-se, falando consigo ou com outros que o acompanhavam, invisíveis e inconstantes, desaparecendo no passo seguinte.
O homem permaneceu ali, mastigando o que sobrava do pão e da experiência, não bastava querer ajudar, era preciso que o outro aceitasse, a ajuda não era automática, gratuita talvez, mas não necessariamente bem-vinda, e então compreendeu que há quem não deseje ser salvo, há quem prefira a própria fome à saciedade imposta, porque a liberdade, essa, tem formas que nem sempre se deixam compreender à primeira mordida.