Horas douradas
Naquela sexta-feira, Lisboa vestia-se com as cores suaves de uma primavera que começava a se instalar, como quem chega de mansinho, sem urgências, apenas deixando rastros de calor no vento e nos gestos. O relógio, indiferente às ânsias humanas, avançava, conduzindo o dia ao fim do expediente, mas para nós, o verdadeiro começo se desenhava nas horas que se estendiam diante da cidade. O sol iluminava os telhados com um fulgor dourado, e havia no ar a promessa de um momento onde o tempo deixaria de ser tirano para tornar-se cúmplice.
E quando ela surgiu, no horário combinado, foi como se Lisboa, com todas as suas vielas e segredos, se curvasse à sua presença. Havia nela uma luz própria, um fulgor que não era apenas dos cabelos dourados que brincavam com a brisa, nem do vestido que lhe adornava o corpo com elegância discreta, mas algo mais profundo, um brilho que emanava de dentro, do espírito que se encontrava em harmonia com a noite que despontava. Seu sorriso trazia uma alegria serena e seu olhar cintilava como o de uma jovem prestes a testemunhar um espetáculo há muito aguardado. Quando nossos corpos se encontraram no abraço, sentimos o tempo dilatar-se, como se houvesse séculos se dissolvendo na ternura do instante, uma entrega que transcendia o cotidiano e se tornava pura essência de amor.
E então, começamos a caminhar. Lisboa nos abria caminhos sem exigências, apenas oferecia-se como um poema escrito nas paredes, nas esquinas, nos cheiros que nos envolviam, nas vozes entrecortadas pelo burburinho das ruas. Cada fachada contava uma história, cada sombra desenhava memórias, e em cada olhar trocado com os transeuntes havia a pulsação de uma cidade viva, que acolhe e transforma. Até que chegamos ao mirante, um portal para o infinito, onde um artista solitário soprava sua gaita de foles. O som atravessava o tempo, ressoando como um eco dos dias antigos em que os celtas percorriam esta terra, e por um instante, fechamos os olhos e sentimos a música nos atravessar como se fôssemos parte de algo maior, algo que não se define, mas se percebe no silêncio entre as notas.
A noite, já entregue aos nossos passos, levou-nos a um pub de alma ancestral, onde os copos, cheios de cervejas artesanais, carregavam sabores que não se limitavam à boca, mas evocavam lembranças que talvez nem fossem nossas, memórias do próprio universo. Cada gole trazia um mistério, uma dança de texturas que se insinuavam e se revelavam como um segredo murmurado ao ouvido. Entre risos e silêncios compartilhados, compreendemos que a vida não se mede pelo tempo, mas pela intensidade dos instantes. E assim, como ensinam os sufis, entregamo-nos ao momento sem reservas, permitindo que ele nos atravessasse, sem nos preocuparmos com o amanhã ou o que viria depois. Porque a existência, quando vista com olhos de quem sabe escutar, revela-se como um fluxo contínuo de beleza e entrega, e ali, naquela noite lisboeta, éramos apenas dois viajantes bebendo do cálice da presença absoluta.
Lisboa 23 de maio de 25.