Aljube da alma - vaidade. Tudo é vaidade

 Ao chegar ao estacionamento do mercado, com a mente a recitar, quase em transe, a lista de compras que me parecia tão cheia de promessas efémeras, deparo-me com uma vaga, aquela que, em minha convicção, seria destinada ao meu modesto veículo. Num impulso que mais parecia o sussurro apressado do destino, dirigi o carro para assinalar a entrada e, num instante em que o tempo se diluía, um outro veículo, regido por uma ânsia exaltada, despontou à frente e apropriou-se do espaço que me parecia ter sido reservado ao meu ser.

Foi então, num repentino tumulto de sentimentos – uma mescla indizível de ira, de ódio e de indignação – que me vi imerso na ilusão de um direito perdido, lutando (ainda que sem saber que a verdadeira batalha é interna) pelo que me parecia ser a primazia de ter chegado primeiro, usando os modestos recursos do automóvel como prolongamento de uma vontade de existir nos meus próprios termos, por aqueles metros quadrados que, de forma insólita, se transformavam no palco de um conflito de egos.

No outro veículo, encontrava-se um homem de meia-idade, cuja presença exalava o brilho de uma riqueza adquirida e uma arrogância sutil, emoldurada pelo luxo do seu carro e por uma existência repleta de conquistas que, desde um berço esplêndido, lhe conferira a convicção – talvez ilusória – de que o mundo era um servo da sua própria narrativa, dominado não tanto pela imposição física mas, antes, pelo poder contido na sua história pessoal. Era como se, naquele gesto, se reproduzisse o antigo labirinto da alma, onde cada ser transita entre o ego e a busca pela verdade, esquecendo-se, por vezes, das lições do sufismo que ensinam a renúncia ao querer dominar e a entrega ao amor universal.

O diálogo que se iniciou entre nós adentrou, inexoravelmente, o terreno de uma guerra psicológica – uma luta que evocava os ecos de um passado ancestral, em que o simples confronto verbal se mostrava incapaz de suportar o peso das aspirações humanas, abrindo caminho para a iminência de uma violência física, como se os antigos arquétipos da humanidade se rebelassem contra a razão. E, nesse impasse que se revelava tão frágil quanto a própria existência, a inevitável rendição tomou conta de mim: cedi a vaga e, com um sentimento agridoce de derrota, estacionei o meu carro noutro recanto, enquanto o murmúrio interno me convidava a refletir.

Respirei profundamente, como se em cada inspiração pudesse encontrar o bálsamo que ensina os dervixes a transcendência, e meditei sobre aquela cena – que mais parecia um microcosmo da insatisfação e da depreciação humanas –, percecionando como o mundo, em todo o seu caos, se aventura a terceirizar a sua própria infelicidade no coletivo, enquanto cada alma, individualizada e egocéntrica, se recusa a ser contrariada e insiste em exercer uma verdade que nega a convivência harmoniosa. É como se, num percurso que se assemelha a uma dança mística, os desejos e os sonhos se isolassem num abismo onde o ego prevalece, esquecendo que a verdadeira liberdade reside na sublime aceitação da unidade de todos os seres.

E, nesse breve episódio no estacionamento, percebi que a luta que travamos – por vagas, por direito, por reconhecimento – é apenas o reflexo, muitas vezes disfarçado, da eterna batalha interior, na qual o autoconhecimento e a rendição ao divino se apresentam como o caminho para a libertação do falso eu. Talvez seja, afinal, num simples recuo perante o que nos separa, que se desvela a essência do amor incondicional e da verdade que, no sufismo, é considerada a única via para a comunhão com o Todo.

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