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A mostrar mensagens de junho, 2025

Fio Invisível - Terceiro movimento

  I Disse-lhe ele, depois de muitos dias calados, e talvez nem dissesse com voz, mas com aquele olhar de quem já perdeu estrada e mesmo assim segue, minha senhora, não sei o nome que a senhora carrega, e pouco importa, pois nome é vento e o que permanece é o peso do silêncio entre as mãos, nunca lhe contei de onde vim porque a senhora tampouco perguntou, e se tivesse perguntado talvez eu dissesse qualquer coisa bonita, para parecer digno de seus modos, mas agora, que o tempo afrouxou minha vaidade, lhe digo com clareza: de onde venho já passou, a poeira se assentou, e o que fica é esse hoje que se faz caminho. Venha, traga o que é seu, não digo bens pois bens são lastros e o que temos é vento, traga sua lembrança, sua sede, sua paz inquieta, e venha morar comigo, não no sentido de paredes e telhado, mas num canto da serra onde a alma pode se despir sem vergonha, onde o Sol entra pelas frestas e os dias se desenham no chão de terra batida, e lá há um espaço pequeno, sim, porque o es...

Fio Invisível - Segundo Movimento

 O senhor que morava na curva do campo largo — aquele que tinha mais silêncios do que vizinhos — acordou certo dia com o som comprido do trem lá longe, atravessando a manhã como quem corta o tempo no meio. Era ferro com lata, e no ranger das rodas ele pressentiu um chamado, mas desses que não vêm com palavras, só com coceira na alma. Levantou devagar, porque pressa não acorda a verdade, e preparou o café e a espera. O terreiro estava varrido, a casa em sossego, só ele e o cheiro de quem viria. Não sabia se era ele quem ia ou se era ela quem vinha, mas isso também não era coisa de saber com a cabeça — era saber de pele, de calo e reza. Na varanda, onde o vento fazia curva, pensou: há tanto pra plantar ainda . Lembrou-se de quando semeou esperança sozinho, só pra ver se Deus escutava semente. Agora, dizia pra si: planto com dois — e dois planta bonito . O trem chegou sem pressa, cuspindo fumaça e destino. Ela desceu. E não se disse nada de princípio, pois o afeto quando é grande não ...

Pontes Indestrutíveis - releitura dos paradoxos

 No ermo da alma, feito beira de abismo, ia o moço com o peito trincado, sem rumo e sem rezas prontas. Mundo de roda-torta, chão que range, céu que some. Mas dentro do peito, um tiquinho de fé — como brasinha que não se deixa. Ia dizendo pra si, como quem reza baixim: “Que os tortos não entortem meu rumo, que os ocos não me desfaçam.” E os anjos — esses que voam com leveza de quem já sofreu muito — cochichavam nos ventos: “Só os de coração inteiro sabem dos de mentira.” Naquele andar brabo, encontrou gente que corre junto — uns que mesmo sem palavras, firmavam o passo do lado. E soube ali: cuidar de quem cuida é como plantar flor em meio ao pedregulho — raro, porém bendito. As pontes que ele pisava eram invisíveis, feitas de gesto e verdade. Não desmanchavam com chuva de mágoa nem com trovão de dúvida. Eram de amor puro, esse que constrói coisa grande: pontes de alma , indestrutíveis. Disse então, como quem escreve destino em pedra mole: “Se é pra ser, que seja inteiro. S...

Aljube da Alma - paradoxo

A hora do almoço, aquele intervalo ínfimo na ordem do dia, sempre uma batalha entre o tempo e a fome, entre o deslocar-se, o comprar, o consumir, tudo isto encaixado em um espaço de sessenta minutos que pouco concediam ao gosto e ao prazer de mastigar sem pressa, mas naquele dia, talvez pela falta de apetite ou pelo excesso de cálculos que lhe fervilhavam no cérebro, resolveu contentar-se com um simples sanduíche e duas latas de energético, uma para si, outra sem propósito definido, até que surgiu o propósito, ou pensou ele que surgiu, porque o propósito às vezes é só uma miragem vestida de intenção. Sentado sob a sombra de uma árvore centenária, sentiu o tempo, pela primeira vez no dia, desacelerar-se, os minutos tornavam-se perceptíveis, o sabor do pão, da carne, do condimento, tudo parecia mais acentuado, e eis que um mendigo aproxima-se, sorridente, educado, a pergunta habitual de quem sabe que a fome exige respostas, há algo para ele comer, mas já só restavam migalhas do sanduích...

Contratempos do tempo

A manhã, líquida e luzente, entrava pelo quarto como quem desliza entre véus, desmanchando os resquícios da noite — sombras que já não eram, espectros de um tempo suspenso. O corpo, ainda embebido na sonolência, emergia lento do limiar do sonho, como quem ressurge das vidas paralelas. O relógio, dormindo em sua vigília mecânica, ainda não bradara a sua sentença, mas ele, já de olhos abertos, atendia ao chamado silencioso dos deuses, que sempre vinham antes do estalo medonho do despertador. Era a dança dos dias — iguais e distintos, um após o outro, bordando a tapeçaria do universo. O ritual era sagrado, metódico: lavar os dentes, o café amargo, a cama ajustada como um gesto de ordem no caos. Depois, a rua, a espera na paragem de autocarro, o cálculo exato dos passos e segundos, porque um ínfimo desvio na engrenagem podia transformar minutos em horas perdidas. O mundo desdobrava-se diante dele — rostos passantes, destinos inconfessados. O trânsito, aquela tormenta engarrafada, pulsava p...

Fio invisível - primeiro movimento

Foi assim, sem alarde e sem pressa, que ele cruzou o limiar do escritório, um espaço que até então lhe era vedado, como se houvesse uma ordem tácita que separava aqueles que vendiam daqueles que compravam, e agora, por um instante, esse véu de separação se desfazia. Carregava consigo suas malas de mostruário, um pequeno universo de tecidos que, dobrados e organizados, aguardavam o momento de revelação, e ali, entre mesas de trabalho e cadeiras que mantinham sua posição sem jamais reclamar cansaço, encontrou um espaço suficiente para abrir seu arsenal de cores, texturas, padrões, cada tecido trazendo consigo um fragmento de história, mãos que os haviam tecido, olhos que os haviam escolhido, vidas que se desenrolavam na trama silenciosa dos fios. As mulheres ali presentes — uma, talvez a dona da loja, a outra jovem, bela, loira de cabelos longos — trabalhavam alheias à sua presença, mergulhadas em cálculos, notas fiscais, papéis que ordenavam o fluxo do comércio, mas à medida que ele com...